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Periodicidade: Semestral (edições em julho e dezembro) a partir do inicio do ano de 2013.
Mensal entre 13 de agosto de 2010 e 31 de dezembro de 2012.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Praieira, Política e Poder: A sessão de 25 de Maio de 1848.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume set., Série 13/09, 2011, p.01-07.


O presente artigo intenta, ainda que de forma bastante introdutória, apresentar, a partir da análise de um caso emblemático vivenciado na conjuntura da Revolução Praieira, características abrangentes no processo eleitoral durante a vigência do império.
Em Pernambuco, durante a Rebelião Praieira, em 1848, houve uma intensificação das disputas partidárias para obtenção de cargos públicos estratégicos no direcionamento do processo eleitoral.


A sessão de 25 de Maio de 1848.
Como é sabido, o então presidente provincial praieiro, Chichorro da Gama, candidatou-se e venceu duas eleições para ocupar o cargo de senador por esta província.
Contudo, ambos os pleitos foram inviabilizados – sob forma de anulação das eleições – pelo Senado Imperial.
Argumentando a comissão senatorial, na sessão de 25 de Maio de 1848, a existência de várias irregularidades no processo eleitoral do qual saíram vitoriosos os candidatos praieiros.
Dentre as quais, alegavam: irregularidades cometidas pela mesa de qualificação; coação ostensiva, exercida, sobretudo, pelas forças armadas regulares sobre os votantes e eleitores; fraudes diversas - como o exercício do voto a quem não cabia o direito; além da ação condescendente e parcial do presidente da província com tais irregularidades, agindo assim no intento de direcionar os resultados da eleição.
Poder-se-ia, não sem razão, identificar nestas objeções elaboradas pela comissão ao pleito dos praieiros a força e influência política dos Cavalcanti e dos Conservadores no Senado.
Não obstante, objetiva-se aqui vislumbrar nestas alegações características que perpassam, não só esta eleição em particular, mas todo o processo eleitoral durante a vigência do império no Brasil.


Eleições, Teatralidade e Poder.
As eleições objetivavam, em parte, garantir a legitimidade da ordem.
Era de grande importância não destruir totalmente as esperanças da oposição de chegar ao poder, revestindo-as, assim, de grande legitimidade.

Concomitantemente, representavam uma encenação política no sentido mais lato do termo, afinal:

“Como em todos os espetáculos planejados e apresentados, o traje revelava o papel. Por meio de suas roupas, os atores exibiam seus status e autoridade, a superioridade de alguns e a inferioridade de outros. (...) Um traje para cada papel reforçava o impacto dramático da cena” (GRAHAM, 1997, p.190).

Conquanto, era preciso aqueles da situação vencer “a todo custo” as eleições, sob pena de perder a liderança de suas clientelas.
Estes impulsos contraditórios que engendravam as eleições só eram possíveis, tendo em vista, a prática do clientelismo como elemento que perpassava todo o sistema eleitoral.
O clientelismo, para Graham, tornava possível conciliar vitória com ordem e aparente justiça.
O clientelismo, para José Murilo de Carvalho, pode ser entendido como um tipo de relação, entre atores políticos, que envolve concessão de benefícios públicos em troca de apoio político.
Neste contexto que serão situadas algumas das alegações feitas pela comissão senatorial na sessão de 25 de Maio de 1848.

           
Participação e Exclusão.
Comecemos por uma das primeiras questões suscitadas pela comissão: “sendo claro que nas votações dos colégios paroquiais intervieram votantes a quem a lei não dava esse direito”. 
Como se sabe, as eleições entre 1824 e 1881 ocorriam em dois graus.
Nas eleições primárias os votantes escolhiam os eleitores, que, por sua vez, elegiam deputados e senadores.

Vários eram os mecanismos de exclusão:

“No que diz respeito à participação das camadas mais pobres do Recife no processo eleitoral, percebe-se como a legislação procurava impedi-la. A começar pelo voto censitário, onde se estipulava uma determinada renda para que o indivíduo tivesse o direito do voto. Mesmo que a lei desse margem para interpretações as mais diversas, e com isso uma parte significativa de homens livres não-proprietários acabassem votando, o máximo a que chegariam era participar como votantes primários”. (ANAIS DO SENADO, 1978, p.197).                                                                                                                                                                                                                                                                                

O voto era censitário.
Pela lei, estariam excluídos de votar na eleição primária: homens livres cuja renda mínima fosse inferior 100.$000 réis – em 1846 este valor seria dobrado – os menores de 25 anos solteiros, clérigos de ordens sacras, filhos que mesmo em idade apta para votar morassem com os pais, os criados de servir.
Excluíam-se, tacitamente, mulheres e negros cativos. Cabe salientar que juízes de paz e vereadores eram eleitos pelos votantes.
Dos eleitores exigia-se 2000 réis, após 1846, 400$000, valor que voltaria a ser reduzido em 1881, devendo o candidato a eleitor, segundo Graham, “ser uma pessoa virtuosa e renomada de discernimento”.
Negros libertos eram automaticamente excluídos deste pleito, tal como, os envolvidos em crimes.

Cabe salientar que não se excluíam os analfabetos, nem se fazia distinção baseada na raça.
Alguns historiadores acabaram por exagerar os limites impostos por este caráter censitário, atribuindo ser a eleição “apenas para a elite”.
Ao que parece, votavam - para os padrões da época - um número relativamente grande de pessoas.
Cabe lembrar que um sufrágio relativamente amplo não significava nem de longe uma eleição democrática, nem ausência de exclusões.
Embora restritos, em termos de contingente, esses pleitos eram mais participativos do que os da subseqüente instalada república, onde a cláusula que impedia o analfabeto participar das eleições constará como forte entrave à participação da população.


Clientelismo, Violência e Fraude.
Contudo, isto era o que fixava a lei.
É preciso pensar na importância de cargos estratégicos que significavam controle direto e efetivo sobre o processo eleitoral.
Assim, era significativa a quantidade de influência política – via clientelismo – que havia na mesa de qualificação.
Sendo o cargo de juiz de paz conhecido como a “chave das eleições”.
A junta de qualificação e a mesa eleitoral das eleições primárias estavam sob sua presidência, somado de mais quatro eleitores, geralmente dos quais, ao menos dois eram seus amigos ou confrades políticos.
Na prática concreta das eleições, segundo Graham, o processo de qualificação dependia, em grande parte, da facção dominante.
No fim, as qualificações legais para o voto – renda, ocupação, residência e mesmo idade – não limitavam totalmente quem de fato votava.
A facção no poder usava de todos os meios legais – e como veremos também extralegais – para não perder a eleição.
Não deve assustar o fato de que, segundo Marcus Carvalho, o governo praieiro, ao assumir a presidência da província tratou de demitir cerca de 600 autoridades, e realocar nos cargos seus amigos e clientes.
O resultado da eleição dependia, em grande parte, da capacidade da facção ou partido no poder conquistar cargos chaves no direcionamento da eleição (CARVALHO, 2003).
A mesa de qualificação não especificava que documentos comprovariam se um eleitor tinha, ou não, renda suficiente para participar do pleito, recorrendo-se, não raramente, as declarações juramentadas.
Ainda no que tange o uso de posições estratégicas dos cargos para o direcionamento da eleição, vemos a comissão senatorial reclamar do papel tendencioso do presidente da província.
Pois, “estes fatos foram levados ao conhecimento do presidente da província pelo juiz de paz, presidente da junta, o qual em diferentes ofícios pedia providencias (...) e nenhuma providência foi tomada, além de se recomendar ao mesmo delegado de continuar a manter a ordem”. (ANAIS DO SENADO, 1978, p.198)
De fato, não raramente, os presidentes provinciais, bem como outras esferas da política oficial, usavam de seu poder para garantir a vitória da facção a que pertencia. Pois, o presidente provincial podia adiar as eleições, por três meses; além de estabelecer normas sobre a legalidade do juiz de paz e vereadores.
Exercendo, deste modo, influência direta sobre quem tinha o controle imediato sobre o processo eleitoral.
Sob pedido do presidente provincial o gabinete podia transferir juízes de direito para outras freguesias e comarcas, ligando-a a facções rivais.
Assim, através dos cargos, clientelisticamente, moldava-se, ou ao menos se tentava moldar, os resultados da eleição.
Contudo, não devemos supor como nos diz Marcus Carvalho, que o clientelismo é um dado que encerra as disputas locais.
O clientelismo não é um dado fixo”.
O chefe político tenta impor seu jugo, no qual seu mando nem sempre podia ser acatado pelos clientes e demais facções.
Neste ínterim, não era pequeno a quantia de disputas locais e constantemente vemos o recurso da força adentrar o cenário político das eleições.
Malogrado todas as estratégias os ocupantes dos cargos públicos, bem como seus rivais, optavam abertamente ao uso da força.
Quanto a isto, alegou a comissão senatorial que “nas assembléias paróquias repetiam-se os mesmos artifícios de fraudes e violências que já haviam falsificado as qualificações. Ameaças, processos, prisões; aparato da força armada, forca e fraudes (...)”(ANAIS DO SENADO, 1978, p. 204).
O emprego de métodos violentos, é verdade, tinham a desvantagem de solapar a reivindicação de legitimidade do processo, pondo em risco os interesses mais amplos que as eleições estavam envoltas.
Algumas vezes, contudo, o ganho parecia compensar os riscos e, de qualquer modo, podia-se sempre recorrer ao pretexto de que se usara a força para manter a ordem.
Era frequente seu uso para se opor a facção no poder, sendo, aliás, um dos pré-requisitos para a alegação de fraudes.
Para que fossem registradas denúncias de práticas fraudulentas, o denunciante devia ter conquistado poder e influência o suficiente para dar-lhe “ouvidos”.
Mais objetivamente, precisava-se, recorrer ao uso da força, ou ao menos, dispor de seu potencial.
Fraudes eram constantes e as mais variadas possíveis: um membro da junta podia deliberadamente ler errado uma cédula e anunciar de outro candidato; ou aumentar os números de inscritos para um nome escolhido, ou ainda, alterar-se as atas das juntas, nestes aspectos numa faltou-lhes criatividade.

Como nos mostra o ocorrido no Recife, na Matriz da Boa Vista:

“Na matriz da Boa Vista alguém, não se sabe quem, adicionou tártaro à água que saciava a sede da mesa eleitoral durante seus trabalhos. Este produto, capaz de fazer qualquer pessoa morrer de vomitar, teve o efeito esperado sobre os componentes da referida mesa. Desse modo, tentava-se conseguir ali a suspensão do pleito em andamento, ou simplesmente o pior: a substituição das autoridades responsáveis pela sua condução” (ROSAS, 2004, p. 97).

Se a fraude malograva, os concorrentes apelavam à força.
Por vezes, apenas a ameaça, ou força potencial, era o bastante.
Enfim, a violência – de lado ou de outro, real ou potencial – não era algo contra o processo eleitoral, mas constituía parte essencial dele.

Assim:

“Em resumo, os grupos rivais sempre dependiam da violência: ou pela força legalmente sancionada da Guarda Nacional, do Corpo Policial ou do Exército, que garantiam que determinados votantes, fossem eles realmente majoritários ou não, se saíssem vitoriosos nas urnas; ou por votantes armados que contestavam tal poder e estabeleciam seu próprio direito de controlar as eleições. (...) E nos dois casos obtinha-se a mesma meta: demonstrar superioridade eleitoral e com isso conquistar um novo ou maior apoio governamental” (GRAHAM, 1997, p. 177).

Quando ocorria derramamento de sangue numa eleição, o pleito subseqüente podia, talvez, transcorrer pacificamente.
Ironicamente, tão veemente quanto à violência era sua condenação.
Esta era redundante no discurso público, pois, representava uma contradição contra o ideal de legitimidade, quanto por que, segundo Graham, punha em questão o liberalismo brasileiro.
Era acentuado o uso das forças armadas regulares no constrangimento de votantes e eleitores.
Tornando-se muito importante seu uso como parte constituinte do arsenal de práticas clientelísticas, sobressaindo o papel desempenhado pelo delegado, subdelegado e inspetores de quarteirão.
Segundo Marcus Carvalho, o governo praieiro, ao assumir o governo da província, recorreu intensamente ao uso deliberado de tais cargos.
Consta ainda nesse manancial fraudulento, e não tão destoantes das práticas coevas, a doação de cargos como um artifício bastante utilizado no processo de “domesticação” das forças opositoras.
Por vezes, os candidatos ofereciam antecipadamente os cargos em troca de apoio durante o processo eleitoral.
Normalmente, aduz Graham, a troca de benesses sucedia a eleição.
Por fim, e para além das denúncias de irregularidades feitas pela comissão, cabe salientar o papel simbólico que impregnava as eleições, ou melhor, “o teatro das eleições”.
As eleições serviam de teatro no qual os participantes usavam recorrentemente a linguagem da estratificação social, pois, mais que incluir votantes, era fundamental os diferenciar.
Somente uma realização pública com muita visibilidade cumpriria a tarefa de situar hierarquicamente os indivíduos participantes.


Concluindo.
Nos atos eleitorais a diferença concreta entre cada nível fazia-se mostrar sem rodeios.
O juiz de paz e demais membros da mesa eleitoral ocupavam nitidamente um lugar diferenciado.
Os atores não apenas afirmavam a honestidade do procedimento, mas desempenhavam papéis distintos de acordo com seu status social.
Os indivíduos não ocupavam sempre o mesmo lugar – poderia haver mobilidade social – mas, reafirmavam-se as distintas gradações desta sociedade.
Em suma, reiteravam-se sutilmente a conveniência da desigualdade.
Contudo, as eleições não deixavam de ser um momento crucial para a participação das classes subalternas.
Participação esta edificada na oportunidade de barganhar – ainda que em condições desiguais – benefícios em causa própria.
Hora burlando as regras clientelísticas com a troca de patrão no ato do voto, hora recorrendo a outras “fraudes”.
Embora, não fossem regras, tais práticas, contribuíam para situar os limites encontrados pelos senhores no direcionamento do processo eleitoral como um todo.


Para saber mais sobre o assunto.
ANAIS DO SENADO. Vol.1(Maio de 1848), Ed. Do Senado, Brasília, 1978.
CARVALHO, José Murilo de. “A construção da ordem: a política imperial” In: Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: civilização brasileira, 2010. 
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia da Letras, 1987.
CARVALHO, Marcus J. M. de. “Os nomes da Revolução: lideranças populares na Insurreição Praieira, Recife, 1848-1849” In: Revista Brasileira de História. vol.23 nº. 45, São Paulo, July, 2003.
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
JUNIOR, Manoel Nunes Cavalcanti. Praieiros, Guabirus e “Populaça”: as eleições gerais de 1844 no Recife. Dissertação de Mestrado. Recife, UFPE, 2001.
MARSON, Isabel. “O cidadão criminoso: o engendramento da igualdade entre os homens livres e escravos no Brasil durante o Segundo Reinado” In: Estudos Afro- Asiáticos, Nº 16, Rio de Janeiro: CEAA, 1988.
ROSAS, Suzana Cavani. “Eleições, Cidadania e Cultura Política no Segundo Reinado” In: CLIO Revista de Pesquisa Histórica. Nº20, Recife: Ed. Universitária, 2004.
SOUZA, Francisco Belizário de. O sistema Eleitoral no Império. Brasília: Senado Federal, 1979.


Texto: Prof. Aurélio de Moura Britto.
Graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco, integrante do Núcleo de Documentação Sobre os Movimentos Sociais da UFPE. (NUDOC/UFPE).



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