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segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

As relações internacionais entre portugueses e chineses no século XVI.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume jan., Série 03/01, 2011, p.01-13.

Ao contrário do tratamento dispensado aos indianos, quando os portugueses chegaram à China, identificaram os chineses não aos infiéis, mais sim, aos gentis, interessando-se vivamente por sua cultura.
Em 1509, após recolherem informações junto as costa indiana sobre um povo branco que há mais de 60 anos não navegava mais por aquelas águas, resolveram adentrar o mar da China.

Já existia um intercambio comercial entre chineses e indianos, realizado por mercadores guzerates, quando especiarias eram trocadas por porcelanas e seda chinesa.

Rapidamente, os portugueses perceberam que poderia ser mais lucrativo eliminar os atravessadores e eles próprios negociarem com os chineses.


A China antes da chegada dos portugueses.
Em 1125, os chineses haviam trocado o comércio terrestre pelo marítimo, por meio de um processo que tinha se iniciado em 618, transferindo a capital do império do interior setentrional para o litoral meridional.
Foi construída uma talassocracia poderosa, contudo, depois que Kubilai Cã (1214-1294), neto de Gengis Cã, exterminou a dinastia Sung, dando inicio a uma nova ordem de imperadores estrangeiros, o comércio marítimo passou a ser visto como desonroso, sendo momentaneamente abandonado.
Em 1368, os chineses conseguiram expulsar os mongóis, recolocando no trono um imperador da terra que reiniciou o expansionismo naval pelo Índico.
Por esta altura, a China chegou a possuir uma frota naval de 63 grandes juncos, tripulados por 30.000 marinheiros.
No entanto, entregue aos caprichos de um poder fortemente centralizado na figura do imperador, sujeito, portanto, a alterações bruscas quando da passagem da coroa de um soberano ao outro, em 1433 o Império chinês interrompeu novamente a expansão marítima.
A constante ameaça de invasão bárbara em suas fronteiras terrestres fez os chineses concentrarem os recursos disponíveis em terra.
Isto não significa que o mar da China tenha ficado completamente desprotegido, pelo contrário, apesar da atividade comercial marítima passar a ser considerada desonrosa novamente, quando os portugueses chegaram ao litoral chinês, a marinha de guerra estava em franca expansão.
Cada província costeira chinesa, governada por um representante direto do imperador, então chamado de Mandarim, possuía sua própria marinha de guerra que, por sua vez, patrulhava uma zona restrita, possibilitando a cada armada não tardar mais do que três a quatro dias para retornar a primeira cidade por que havia passado.


O poderio marítimo chinês.
Embora a primeira vista possa parecer que a chegada dos lusos foi o principal estimulador do incremento da marinha de guerra chinesa, na realidade isto vinha sendo levado a termo há pelo menos meio século.
O deslocamento da atenção do poder central para as fronteiras terrestres havia deixado um espaço em aberto que, rapidamente, tinha sido ocupado por piratas chineses e guzerates.
Quando estes haviam começaram a perturbar as populações litorâneas, o imperador tinha sido obrigado a descentralizar sua antiga marinha, passando a responsabilidade da patrulha costeira aos Mandarins.
Assim, quando os portugueses iniciaram o mapeamento do mar da China, para além da grande força presente em terra, toparam com armadas que patrulhavam a costa de cada província.
O que dificultou enormemente a conquista pela força das armas de qualquer ponto estratégico litorâneo que pudesse servir de trampolim ao domínio do comércio marítimo da zona.
Para se ter uma idéia do peso das armadas chinesas, quando um capitão português à frente de três naus fortemente artilhadas, por volta da metade quinhentos, esteve no mar da China à procura de seda que pretendia tomar dos nativos quase de graça, um episódio inusitado aconteceu.
Pretendendo, a exemplo do procedimento adotado na Índia, comprar barato através da intimidação pela força das armas, a simples menção de que a armada do Mandarim de Buhaquirim estava tomando mantimentos em um lugar dali sete léguas, fez os portugueses recuarem.
Principalmente porque eles sabiam ser esta armada composta por quarenta juncos grandes e vinte e cinco outras embarcações menores de remo, em que estavam presentes sete mil homens, sendo cinco mil soldados e dois mil marinheiros.


O estabelecimento de relações diplomáticas.
Quando finalmente os portugueses encontraram um povo devidamente preparado para resistir à invasão, contornaram o problema através da diplomacia.
Pela ótica lusitana não havia outra opção, uma vez que, para além de uma marinha de guerra forte e um exército terrestre numeroso, a própria forma de governo centralizada existente na China impedia que fossem encontrados aliados entre os nativos da terra.
Aparentemente não havia nada que pudessem servir de estopim a desestruturação da coesão interna, a China era um Império poderoso.
A lealdade era colocada em primeiro plano pelos chineses, quando a soberania do imperador era colocada em seque, nem os piratas aceitavam formar alianças com os portugueses, a despeito de terem existido algumas poucas.
Não possuindo o Estado chinês qualquer tipo de interesse no comércio marítimo, estando o país fechado e voltado para dentro quando os portugueses chegaram por lá, como ocorreu na Índia, à origem dos desentendimentos luso-chineses encontrou sua base nas diferenças civilizacionais.
Um obstáculo que impediu os portugueses de substituírem totalmente os piratas chineses e guzerates, assim como os mercadores de Malaca, na intermediação comercial entre a China e a Índia e, posteriormente, com o Japão.


O deslumbramento português frente à cultura chinesa.
Ao contrário do que aconteceu com outros povos encontrados pelos portugueses, desde os primeiros contatos, eles ficaram muito impressionados com a organização social chinesa, suas cidades, sua tecnologia, e, diga-se de passagem, especialmente com a tipografia, caracterizando os chineses como muito corteses.
Os relatos que chegavam a Portugal, dando conta das novidades que eram observadas na China, classificavam as obras de arquitetura como preciosas e engenhosas.
Faziam notar que as ruas, nas cidades e aldeias, eram muito formosamente empedradas e pavimentadas, todas construídas de forma perpendicular, de modo que quem estava de um lado poderia ver até o fim da rua, por mais comprida que fosse por causa da sua retidão.
As cidades portuguesas de então tinham ruas tortas, raramente eram pavimentadas e, a desorganização, fazia com que muitas não tivessem saída, dando em becos perigosos para os transeuntes, formando verdadeiros labirintos.
 As casas chinesas eram descritas pelos portugueses com admiração, pois seriam bem estruturadas, baixas, sem andares e térreas, com um interior muito espaçoso e com grandes divisões e jardins de recreio, cheias de todo o gênero de curiosidades e ornamentos.
Diante de relatos como este fica fácil imaginar o impacto que devem ter provocado em Portugal as noticias que chegavam da China.
A própria de Portugal, em se tratando das condições de saneamento, moradia e do calçamento das ruas, não chegava aos pés de uma simples aldeia chinesa e muito menos de suas principais cidades.
Lisboa era na época um amontoado de ruas enlameadas, estreitas e tortuosas, apinhadas de casas apertadas de dois a três pavimentos, onde em cada casa se aglomeravam várias famílias em condições deficitárias de higiene.
Diferente de Lisboa, Pequim, a capital da China, era conhecida como a cidade celeste, sendo cercada por muralhas que tinham a distância de uma porta a outra tão grande que um homem a cavalo não podia andar em um dia, sendo dela contado mil milagres, tamanha sua organização social e arquitetônica, exemplo basilar que demonstra as diferenças culturais que se fariam sentir nos contatos luso-chineses.
Não bastasse a arquitetura, enquanto a imensa maioria dos portugueses eram analfabetos, estima-se que mais de 90%, e o acesso aos livros era um tanto restrito em Portugal, graças ao uso difundido da tipografia, os chineses tinham muitos livros disponíveis em bibliotecas públicas.
O acesso a leitura e o numero de letrados na China, mesmo que treinados somente nos rudimentos da escrita, era tão grande que, na opinião dos lusos, os chineses chegavam a ultrapassar os antigos gregos e romanos.
O orgulho nacional chinês fazia com que os livros relatassem sobre praticamente tudo que dizia respeito ao país e sua história.
A china possuía ainda memoráveis artes, leis, decretos e, igualmente uma polícia civil e ordenações civis e governos.
Assim, encontrando um povo cuja civilização em muitos aspectos ultrapassava o que havia de melhor na Europa, os lusos chegaram a tomar a China como modelo e paradigma para uma visão crítica da própria realidade portuguesa, ficando patente a admiração pela civilização chinesa, o que influiu decisivamente no modo de lidar com outro.


A incapacidade lusitana de dominar a China pela força das armas.
Não foi apenas a admiração que influiu nas relações diferenciadas dos portugueses com os chineses.
Da mesma maneira que foram observados a arquitetura e o nível cultural da China, os lusos notaram que seria impossível vencer um povo que de tão numeroso dividia-se por quinze províncias, estando espalhado por 591 grandes cidades e 1593 cidades menores.
Isto sem contar as aldeias e povoações, algumas das quais, por menor que fossem, eram do tamanho das maiores cidades portuguesas, de onde se podia deduzir a grandeza do país.
Não bastasse o peso do efetivo militar da China, cedo os portugueses perceberam que os chineses tinham também ciência da artilharia, fabricando pólvora e munições correspondentes há já muitas centenas de anos, pelo que não faziam mais memória da sua origem.
A despeito de não conhecerem o uso de canhões, tinham outros tipos de armas de fogo, muitas das quais mais eficientes que os escassos mosquetes lusitanos.


A opinião dos chineses sobre os portugueses.
Enquanto os portugueses viam os chineses com admiração, e, não fosse à diferença religiosa, até mesmo como potenciais aliados, por outro lado, segundo palavras literais da época, a imensa maioria dos chineses enxergava os portugueses como gente de mal titulo.
Uma opinião sustentada devido ao receio de uma invasão bárbara e o espanto que causava ter contato com mar, no caso, vale lembrar, cujos indivíduos eram considerados inferiores, além é claro dos choques culturais que se seguiram a cada contato luso-chinês.
O primeiro embaixador português enviado a China foi assassinado por ladrões e preso a mando de representantes do Imperador por mendigar.
Os primeiros contatos entre chineses e portugueses haviam sido até certo ponto cordiais, mas os lusos foram sempre recebidos com desconfiança.
Depois que a armada de Simão de Andrade chegou a Cantão, em 1519, e, diante de noticias de piratas nativos agindo no local, resolveu iniciar a construção de uma fortificação, pratica comum entre os portugueses, mas que era contra o sentimento de hegemonia chinês, as relações luso-chinesas entraram definitivamente em declínio.
Na ocasião, para além da construção da fortaleza lusitana, Simão de Andrade enforcou um dos seus marinheiros e impediu mercadores estrangeiros de comercializarem antes dele próprio concluir seus negócios.
O que causou indignação entre os oficiais chineses, pois na ótica deles o capitão português procurava exercer poderes que só cabiam ao Imperador.
Não por acaso, o título do rei da China era o de rei e senhor do mundo e filho do céu, sendo considerado quase como um deus por seus súditos e se considerando ele mesmo como tal.
O que na ótica portuguesa era inaceitável, uma vez que cabia somente ao Rei de Portugal, cujos navegantes haviam sido guiados pelo verdadeiro Deus à Índia, decidir sobre os rumos do Oriente.
Ao passo que na visão dos chineses deveria ser o Imperador chinês, na qualidade de senhor do mundo civilizado, o único a decidir pelo destino da China e dos bárbaros com quem o país tivesse contato.
Nestas condições nada seria mais natural que um confronto direto entre chineses e portugueses que, certamente, teria culminado com a derrota dos últimos e talvez até mesmo com a expulsão das naus de Portugal do Índico.
No entanto, quando Simão de Andrade cometeu seus desatinos, governava o Imperador Wu-Tsung, homem velho e mais afeito a diplomacia do que a guerra, sendo que os portugueses, por sua vez, já tinham percebido que a força militar dos chineses não podia ser vencida por um país com falta de gente e recursos como Portugal.
O resultado foi o inicio de um entendimento pacifico, os chineses permitiriam o livre comércio em suas terras e os portugueses passariam a respeitar a soberania chinesa administrada pelos Mandarins, freqüentando o litoral da China sem tentarem fundar feitorias ou fortalezas.


A morte do imperador e mudanças nas relações diplomáticas.
Quando Wu-Tsung faleceu, tudo mudou, oficialmente o novo imperador proibiu os portugueses de comercializarem em suas águas.

As negociações que apenas engatinhavam foram por água abaixo, a partir de então, por mais respeitosos que fossem, graças à má fama adquirida na África e na Índia e confirmada por Simão de Andrade, segundo documentos lusitanos da época, os portugueses passaram a ser tratados por toda a China sempre com ingratidão e descortesia.

Exatamente por este motivo, a Coroa resolveu entregar o comércio com a China aos particulares, aos aventureiros dispostos a se arriscarem, isto ao menos até que Macau fosse entregue aos portugueses em 1557, e, antes disto, o comércio luso-chinês fosse finalmente autorizado pelo Imperador em 1554.
Seja como for, no período em que os portugueses estiveram proibidos de navegar no mar da China, os aventureiros lusitanos conseguiam freqüentar apenas três cidades: “Sanchoão, Liampó e Lampacau.
Eram os únicos portos onde as autoridades chinesas aceitavam suborno para fazer vista grossa, talvez até mesmo com a conivência do imperador.
Todavia, mesmo nestas zonas o ódio aos portugueses imperava e os nativos não eram dignos de confiança.
Em certa ocasião, depois de fazer negócio e trocar especiarias por seda, o capitão português Antônio de Faria foi ludibriado por um Mandarim de Liampó.
Percebendo que a cobiça poderia ser a chave para fazer os portugueses se autodestruírem, isto sem que fosse necessário aos chineses erguerem um único dedo, o Mandarim indicou o rumo de uma cidade que supostamente teria interesse em comercializar com os lusos.
O capitão português seguiu as indicações seguro de chegar ao destino por dois meses e meio, só então passando a ficar desconfiado do que lhe dissera o chinês, passando a ficar muito arrependido daquela viagem, justamente em um momento em que o navio estava tão enfiado em águas perigosas e que tudo que restava a fazer era senão encomendar-se a Deus.
O episódio resultou em um miserável naufrágio e posterior aprisionamento dos sobreviventes lusitanos em uma estéril prisão, com grilhões nos pés, algemas nas mãos e colares nos pescoços, nos arredores de Nanquim.
Estes portugueses, como ordinariamente acontecia com aqueles apanhados infringindo a proibição de comercializar na China, forma muito maltratados com açoites e fome, em um miserável trabalho.


O assédio de piratas chineses aos navios lusitanos.
Depois de 1554, ano que marca a liberação do comércio na China aos portugueses, tendo ficado mesmo assim interditado freqüentar outros portos além de Macau, a imensa maioria dos piratas chineses, que antes saqueavam indistintamente o litoral de seu próprio país, passaram a priorizar a caça as naus portuguesas.
Primeiro porque o butim era muito mais proveitoso, depois porque, mesmo entre este estamento, o senso de patriotismo passou a clamar pelo combate aos bárbaros, aqueles que eram considerados como não mais que ladrões que roubavam as gentes do mar.
Por isto mesmo os portugueses eram considerados como as pessoas mais baixas, inferiores aos chineses impuros que lidavam com o mar.
Procurando contornar este assédio, muitos contrabandistas portugueses deixaram de lado o uso de naus, passando a servir-se de embarcações nativas para tentarem passar despercebidos, o que nem sempre funcionou.
Pela altura da metade do século XVI, por exemplo, Fernão Mendes Pinto, navegando em uma lanchara de remo, depois de ser atacado por piratas e sair vitorioso, encontrou na embarcação aprisionada quatro portugueses que não haviam tido a mesma sorte.
Estes portugueses tinham sido atacados pelos mesmos piratas, isto apesar de terem sido pegos a bordo de um junco.
Pela manhã seguinte, Fernão Mendes Pinto avistou gente que se perdera no mar, flutuando sobre pedaços de paus.
Na realidade quatorze portugueses que haviam sobrevivido ao naufrágio de outro junco causado também por um ataque de piratas chineses.
Embora na maioria das vezes tenham sido os portugueses a saírem derrotados, tendo chegado o assédio dos piratas nativos a ser considerado como o maior inimigo que os portugueses tiveram no mar da China, em algumas ocasiões conseguiam repelir o assédio.


Atritos com as autoridades chinesas.
Em ocasiões em que os lusos contaram com o apoio de piratas chineses que constituíram exceções a regra, já que deixaram clamar mais alto o dinheiro do que o patriotismo, na verdade tripulações mistas formadas por chineses e guzerates, os lusos entraram em batalhas contra autoridades chinesas, saindo vitoriosos, apesar de mais cedo ou mais tarde terem sofrido represarias.
Em um episódio emblemático, servindo de perfeito exemplo dos desentendimentos culturais luso-chineses, o já citado capitão Antônio de Faria se envolveu em um confronto direto com o Mandarim de Nouday.
Ele comandava em nome do imperador uma pequena cidade costeira, sem grande importância estratégica, estando por isto mesmo quase desprotegida.
Por isto mesmo os portugueses obtiveram a vitoria, mas, como há pouco relatamos, levaram o troco ao ser ludibriado pelo Mandarim de Liampó, quando então terminaram sendo presos e levados a presença do imperador da China para responder pelos seus crimes.
Tudo aconteceu porque o Mandarim de Nouday fez cativos cinco portugueses, ao passo que, tendo sido Antônio de Faria encarregado pela Coroa de negociar a libertação destes, teria bastado ele escolher mal as palavras, quando pediu uma audiência com o Mandarim, para agravar a situação.
Entre outras coisas, dizia seu pedido de audiência:
“(...) que elle era hum mercador estrangeyro portuguez de nação, que hia de veniaga para o porto de Liampo, onde avia muytos mercadores estantes na terra com suas fazendas que pagavão seus direitos costumados, sem nunca fazerem nella roubos nem males como [se] dezia [e que] (...) el Rey de Portugal seu senhor era com verdadeira amizade irmão de el Rey da China, vindo elles a sua terra, como tambem os Chins por este respeito costumavão yr a Malaca, onde erão tratados com toda a verdade, favor, e justiça, sem se lhes fazer agravo nenhum”.
Na verdade, as diferenças civilizacionais fizeram com que os signos de amizade e cordialidade expressos pelos portugueses fossem interpretados como a mais pura grosseria.
Escutando estas palavras dos interpretes enviados por Antônio de Faria, o Mandarim mandou açoitar os dois que levaram a carta e cortar as orelhas, tornando a mandar como resposta, escrita em um papel roto que dizia:
“Bareja triste, nascida de mosca encharcada no mais sujo monturo que pode aver em mazmorras de presos que nunca se alimparão, quem deu atrevimento a tua baixeza para perafusar nas cousas do Ceo? Porque mandando eu lèr a tua petição, em que, como o Senhor me pedias que ouvesse piedade de ty que eras miseravel e pobre, à qual eu, por ser grandioso, já me tinha inclinado, e estava quase satisfeito do pouco que davas, tocou no ouvido de minhas orelhas a blasfemia de tua soberba, dizendo que o teu Rey era irmão do filho do sol, lião coroado por poderio increivel no trono do mundo debaixo de cujo pé estão sometidas todas as coroas dos que governão a terra com real cetro e manto, servindo lhe contino de brochas de suas alparcas, esmagados na trilha do seu calcanhar, como os escritores das brallas do ouro testemunhão na fè de suas verdades em todas as terras que as gentes habitão. E por esta tamanha heresia mandey queimar o teu papel, representando nelle por cerimonia de cruel justiça a vil estatua de tua pessoa, como desejo fazer a ty tambem por tamanho pecado, pelo qual te mando que logo e logo, sem mais tardar faças á vella, porque não fique maldita do mar que em sy se sostenta”.
Vendo-se acuado, não possuindo os dotes diplomáticos requeridos, uma vez que era, como ele mesmo caracterizou, apenas um mercador, ao invés de tentar corrigir o erro, Antônio de Faria optou por se aliar ao pirata chinês Quiay Panjão.
Enxergando na ocasião a oportunidade ideal de saquear seu próprio povo e colocar a culpa exclusivamente nos portugueses, o pirata chinês atacou a cidade de Nouday com trezentos homens, dos quais setenta eram portugueses e os demais escravos e marinheiros.
Além é claro da gente de Quiay Panjão, dos quais cento e sessenta eram arcabuzeiros e outros lanças e chuças, usando bombas de fogo e outras muitas maneiras de armas a moda chinesa para destruir a cidade a partir do mar.
Após desembarcarem, com fervor da vitória, os portugueses e seus aliados se arremeteram à porta de Nouday, nela acharam o Mandarim seiscentos homens consigo.
O representante do imperador estava em cima de um bom cavalo, vestido com umas couraças de veludo roxo de cravação dourada do tempo antigo.
Segundo o relato da época, um moço português derrubou o Mandarim do cavalo com uma espingarda que lhe deu pelos peitos.
Os chineses ficaram tão assombrados que, todos juntamente, voltaram logo às costas, começando a se recolher sem nenhuma ordem pelas portas dentro, abrindo espaço para que os lusos derrubassem todos às lançadas, invadindo a cidade.
Cabe ressaltar que causa estranheza este caso em que os portugueses saíram vitoriosos, isto a despeito de constituir uma exceção a regra.
O sucesso deve ser tributado também à incomum aliança com piratas chineses, pois, como dá conta um soldado português que serviu no Oriente, os lusos tinham práticas militares da idade media.
Entre os portugueses imperava a desordem e indisciplina, o que, contraposto a rígida e milenar disciplina militar chinesa, deixa claro a ineficiência de possíveis tentativas lusitanas de conquista de pontos do litoral chinês.
Mesmo no caso há pouco descrito, quando os portugueses conseguiam invadir o litoral da China, a vitória era apenas momentânea, uma vez que reforços sempre terminavam por expulsar os invasores.
O que explica a inexistência de feitorias ou fortalezas portuguesas na costa chinesa, isto é claro com exceção de Macau, local onde os portugueses conseguiram se fixar apenas porque foram autorizados pelo imperador da China.


A ineficiência militar lusitana.
Conforme registrou o soldado Francisco Rodrigues Silveira, quando atacavam, os portugueses arrancavam logo todos contra a praia, repartidos por duas ou três bandeiras sob seus respectivos cabos.
O capitão-mor ia à frente da bandeira de Cristo, na qual avultava a imagem da cruz, mas o comando era puramente nominal.
Em terra o capitão dava a voz, porém cada um, sem se importar nem de chefe nem de camaradas, rompia avante, guiando-se em toda a refrega pelos próprios impulsos.
Esta avançada vertiginosa era quase sempre irresistível, entrando na povoação, todo ser vivo era metido à espada - velhos, mulheres, crianças e até os animais -, não só por crueldade, próprio do século, como por ser este o costume entre os portugueses.
Em casos raros a cadeia de comando era respeitada, quase sempre quando um nobre de sangue estava à frente de uma companhia.
Exatamente por ser um fidalgo, comandava com maior autoridade e era respeitado por sua posição.
No entanto, mesmo assim a situação era tão caótica como se não houvesse comandante algum, pois, como ocorria com relação a cargos de confiança a bordo das naus, muitas vezes o privilégio de liderar uma tropa era conseguido mediante relações de parentesco ou simplesmente através da compra do cargo.
O resultado era um completo desastre, como seria esperado em uma sociedade onde a liderança era conseguida pelo nascimento ou suborno e não pelo mérito.
Diferente dos portugueses, entre os chineses não havia senhores com títulos, tais como condes, duques ou outros semelhantes, nem qualquer um que tivesse vassalos, domínios, jurisdição ou propriedades, a não ser dados pelo imperador de sua livre vontade.
Acontece que os títulos, não sendo hereditários, eram recebidos conforme o merecimento, sendo que, quando estes morriam, tudo voltava de novo para imperador e este, se quisesse, podia tirar aos filhos, deixando o título nas mãos deles apenas quando tinham capacidade para tal.
O que garantia uma cadeia de comando eficiente e fiel ao Imperador, fornecendo lideres verdadeiramente respeitados por seus comandados, frente aos quais os portugueses não conseguiam se sobrepor.


Concluindo.
Enquanto os portugueses procuravam o lucro pessoal, o enriquecimento fácil, servindo-se do falso pretexto de servir o rei e Deus, a imensa maioria dos chineses vivia realmente para servir seu imperador e a grandeza da China.
Os chineses tinham um rígido código de conduta militar e moral, seguido em maior ou menor grau conforme o estamento de cada indivíduo, haja vista até mesmo os piratas chineses, a despeito de algumas exceções, terem incutido um ódio mortal a presença dos lusos no mar da China.
Este ódio foi tão intenso, talvez estimulado pela noticia das crueldades praticadas pelos lusos, que tornou-se uma diversão entre os piratas chineses, quando aprisionavam portugueses, mandar lançar os miolos fora com uma tranca, como fez o pirata Similau a Gaspar de Mello.
Seja como for, apesar das dificuldades, o comercio com a China foi um negócio lucrativo que incrementou os produtos transportados pela Carreira da Índia e, depois de seu declínio, chegou até mesmo a garantir a sobrevivência da rota.
Não obstante, enquanto o Estado chinês foi o grande dificultador de uma maior penetração portuguesa na China, no Japão os portugueses entrariam em confronto direto com as lideres religiosos japoneses.
No Japão provocariam um tipo de conflito cultural, em alguns aspectos, muito semelhante ao ocorrido na Índia, com a diferença que os japoneses, a exemplo dos chineses, se mostrariam mais preparados para repelir a invasão lusitana.
Mas esta já é outra história.


Para saber mais sobre o assunto.
RAMOS, Fábio Pestana. Naufrágios e obstáculos enfrentados pelas armadas da Índia portuguesa. 1497-1653. São Paulo: Humanitas, 2000.
RAMOS, Fábio Pestana. No tempo das especiarias. São Paulo: Contexto, 2004.
RAMOS, Fábio Pestana. Por mares nunca dantes navegados. São Paulo: Contexto, 2009.


Texto: Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

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Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

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